Bruno Brulon Soares e Renata Vieira da Motta

A crise do coronavírus se alastra por todos os setores: da política à cultura, da economia global à vida privada, dos hospitais aos museus. Reforça incertezas que já se espalhavam como uma doença crônica em sistemas públicos e privados. Já havia chegado de forma sensível em nossas instituições culturais e, agora, ameaça sua própria existência.

Museus, teatros, cinemas estavam entre os primeiros a fechar as portas. Desde então, têm enfrentado o desafio da sobrevivência. Apenas nas organizações sociais de cultura que atuam no estado de São Paulo houve um corte de R$ 68 milhões, que já significou redução salarial temporária ou suspensão de contratos para 80% dos seus colaboradores.

Esse cenário não é novo, e seus sintomas começaram a aparecer durante o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018 —sintoma que novamente apareceu nesta semana no incêndio do Museu de História Nacional da UFMG. Ligados a um Estado que se exime da responsabilidade sobre sua manutenção, os museus se inserem com dificuldade na economia global e lutam para se ajustar aos fluxos dos sistemas liberais.

O Cadastro Nacional indica a existência de 3.700 museus no Brasil, sendo 67% públicos. Nas últimas duas décadas, apoiados por políticas culturais comprometidas com a justiça social, se multiplicaram e se diversificaram, colocando em prática a sua função social. Surgiram pequenos e potentes museus de comunidades, geridos por grupos que fizeram da sua vulnerabilidade um motivo para a resistência: museus de favela, de quilombos, indígenas, da memória proletária, das mulheres e das pessoas LGBT, entre outros, povoam hoje a paisagem museal brasileira, que vem se distanciando do lastro histórico da uma elite cultural. Nesse contexto diverso e plural, o Estado deve proteger e disponibilizar meios para a sobrevivência dessas instituições.

Os museus já provaram a sua função em tempos de crises. No pós-guerras na Europa, assumiram o papel de reerguer sociedades devastadas, por incentivo da Unesco e do Conselho Internacional de Museus (Icom), criados em 1946. Desde então, reestabeleceram o sentido de pertença das pessoas diante das adversidades, tornando-se um lugar seguro para tratar assuntos difíceis.

Os museus serão obrigados a repensar sua função diante do fosso de desigualdade social e do luto com o qual todos teremos que lidar. Protegendo seus profissionais e assegurando a manutenção do patrimônio, devem servir como plataformas polivalentes para aspirações locais.

Museus são necessários para o luto e para a luta. No melhor uso que podemos lhes dar, essas instituições da memória podem desempenhar papel regenerativo sobre a vida das pessoas, e restaurativo do viver em sociedade, atuando sobre a nossa capacidade de reformular o passado no presente. Ao mesmo tempo, guardam o substrato de que precisamos para resistir e para lutar por um futuro melhor.

É preciso reconfigurar a experiência museal para as comunidades, nas comunidades e com as comunidades, fazendo dos museus um recurso democrático, socialmente inclusivo e economicamente sustentável. Como aprendemos com Ailton Krenak, para combater o vírus, para pensarmos em um outro mundo possível, temos de ter primeiro cuidado e depois coragem. Que os museus possam nos ajudar, com sabedoria e capacidade de transformação, na luta que está por vir.

Bruno Brulon Soares / Presidente do Icom-Icofom (Comitê Internacional de Museologia do Conselho Internacional de Museus)

Renata Vieira da Motta / Presidente do Icom Brasil


Folha de S.Paulo, Tendências e Debates – 16.jun.2020 às 23h15

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/06/museus-em-tempos-de-covid-19-o-luto-e-a-luta.shtml

Museus em tempos de Covid-19: o luto e a luta
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